segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Cartas Escocesas (VII)

Mamma-Mia!: A surpresa

O conjunto ABBA, oriundo da Suécia, e formado por Benny Andersson, Biorn Ulvaeus, Anni-frid Lingstad e Agnetha Falskog, tornou-se conhecido do grande público quando em 1974 ganhou o Festival da Eurovisão com Waterloo. Era um novo tipo de música que se afirmava, através dum género melódico sincopado, casado com o uso em larga escala da precursão, e utilizando as vozes das mulheres com excelente gosto.

No ano seguinte o conjunto produziu aquele que seria o seu êxito mais emblemático: Mamma-Mia!. Esta canção é singularíssima pela sua originalidade, mesmo dentro do Universo ABBA. O conjunto pontificou na música europeia durante mais de 10 anos, casaram entre si, vendeu qualquer coisa como 400 milhões de discos em todo o mundo, e mesmo hoje, depois de afastados, consegue ainda vender entre 2 a 4 milhões de discos por ano. Desapareceram quando os dois casamentos chegaram ao fim. Não deixou sucessores.

Perante tamanho sucesso pensou-se em fazer-lhes uma homenagem teatral. Em 1999 o musicalMamma-Mia! estreou-se em Londres, posta em cena por Phyllida Lloyd, baseada num libreto de Catherine Johnson, e a partir da peça fez-se o filme do mesmo nome, também dirigido por Phyllida Lloyd com Meryl Streep e Pierce Brosnan nos principais papeis, que estreou em Estocolmo em 4 de Julho de 2008, com a presença pela primeira vez em público em muitos anos dos quatro elementos dos ABBA. O filme é o musical mais visto de sempre, mais do que West Side Story, e em Setembro-Outubro deste ano quando o respectivo DVD foi posto à venda venderam-se de repente qualquer coisa como 1.7 milhões de cópias. Perante um tão grande sucesso pergunta-se: o que tem este filme de tão especial?

Não é com certeza o argumento. Donna Sheridan (Meryl Streep) depois duma vida acidentada enquanto jovem retira-se para uma ilha grega aonde dirige um hotel que lhe permitiu criar a filha fruto das loucuras da juventude. Esta filha não sabe quem é o pai, mas um dia fica a saber que num curto espaço de tempo, uma semana, a mãe teve três amntes em sucessão (!!!) pelo que a jovem pode ser filha de qualquer deles. Quando está para se casar, a jovem convoca os três marmanjos para a boda, na esperança de saber quem é o Pai. Os três comparecem, assim como as companheiras de má (boa) vida de Donna, que ainda se sentem com forças para conquistar jovens.

Mas será que este argumento não tem ponta por onde se lhe pegue, como pretendem alguns críticos, naturalmente pudicos? Evidentemente que não: esta linha de argumento tem a ver com os comportamentos dos anos 60-70, e os sonhos associados da dita classe média. A liberdade sexual é uma questão essencial para a Classe Média. E de facto a história é uma expressão disso mesmo: depois do desvario os jovens entram na linha como fez Donna, depois de bons momentos copulando em larga escala, tratou de ser mais recatada e refugiou-se numa ilha grega para uma vida de eremita. E tudo isto se deverá processar à margem da luta de classes, pois a classe média sempre quis ultrapassar essa realidade.

O filme é a celebração destes valores, os mesmos que a Classe média gostaria que fossem prevalecentes no mundo, e não os valores conservadores reaccionários dos que diabolizam a actividade sexual, uns e outros à margem da luta de classes. Todos os presentes mostram uns que não se envergonham das suas vidas e actividade sexual, e outros de o continuarem a fazer sempre que tal lhes é possível.

No final do filme, e na própria igreja aonde vai ter lugar o casamento, a jovem resolve-se suspender o seu casamento, não porque não goste do namorado, mas porque deseja ir conhecer como é bom viver a vida que a mãezinha já teve. Depois lá voltará ao redil como boa ovelha. E qual dos marmanjos é o pai? Fica-se sem saber. O mais possível é o personagem de Pierce Brosnan, que na falta do casamento da jovem, casa com a mãe, e o filme tem um final feliz.

Em termos de construção o filme vale pela música dos ABBA, um expoente da ideologia da Classe Média, e a apologia teatral dos valores que lhe estão subjacentes. Há um casamento perfeito entre a encenação e a música dos ABBA, e isso resulta num fantástico visual. O filme maximiza assim o bem-estar de quem o vê, as mulheres são as heroínas, e não é por acaso que todas as feministas contactadas, e todas é mesmo todas, a dar a sua opinião aplaudem sem reservas o filme, o que também diz muito acerca do conteúdo ideológico do feminismo, e do seu horror à luta de classes.

O filme surgiu na vigência da crise económico-financeira mundial, e idealiza uma classe média que na vida real sofreu imenso com a crise. Ele mostra como o Mundo seria um paraíso se não houvesse problemas. Tudo isto foi posto em causa pelas manifestações recentes da realidade. Mas isto significa também que embora sem quaisquer fundamentos, a ideologia da dita classe média tão bem expressa em Mamma-Mia! constitui algo a ter em conta em todo o processo de construção dum futuro radioso sem exploração. A estes temas voltaremos mais tarde.

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